UMA VISÃO ATUAL DA COAGULAÇÃO

A expressão do Fator Tecidual (TF)
sobre membranas celulares.

O laboratório de Coagulação/Trombose/Hemostasia moderno dispõe de diversas metodologias e instrumentais a fim de executar os testes necessários ao manuseio dos pacientes críticos. Dentre os métodos empregados, encontram-se os ensaios cromogênicos, os baseados na formação de coágulos, os imunológicos, os eletroforéticos, as curvas de agregação plaquetária e os estudos radioisotópicos, mais raros em nosso meio.

A interpretação destes exames laboratoriais para decisão terapêutica requer não somente uma análise judiciosa das situações clínicas, mas também adequado entendimento da sensibilidade e especificidade de cada ensaio, e de como estes resultados podem ser afetados por medicações, doenças associadas e distúrbios paralelos do sistema hemostático, ainda não identificados.

É importante enfatizar, já que pretendemos também monitorizar dados, que estes resultados dependem de coletas bem realizadas, sistemáticas, por uma equipe treinada para o manejo e transporte de amostras biológicas, com o mínimo de distúrbios ex vivo dos fatores hemostáticos.

 
Faz-se indispensável uma avaliação médica especializada, esmerada e cuidadosa, com relação aos testes laboratoriais empregados,  tendo em vista o diagnóstico e conduta adequados.

 

A TROMBOELASTOGRAFIA

 

 

A coagulação sanguínea é o resultado das interações dinâmicas entre os fatores solúveis plásmáticos, as plaquetas e o vaso sanguíneo, em especial o endotélio vascular1,2. Os sangramentos em terapia intensiva e em ambientes de pós operatórios, na maioria das vezes, são causados por uma combinação de hemodiluição, consumo de plaquetas e  fatores da coagulação, alterações da função plaquetária, hiperfibrinólise, hipotermia, efeitos de drogas, patologias sistêmicas associadas, e outros efeitos cirúrgicos3,5.

Os testes rotineiros da coagulação - PTTa, PT e INR -  solicitados com freqüência em serviços que empregam drogas anticoagulantes como heparinas e anticoagulantes orais, são realizados em plasma citratado, e  apenas informam  o tempo de coagulação, ou seja, quando surgem as primeiras  fibrinas que construirão o coágulo. No entanto, a qualidade deste entremeado de fibrina, ou seja, o coágulo iniciado,  foge ao escopo destes exames. O papel das plaquetas, extremamente importante no contexto da coagulação, deixa de ser avaliado nestas amostras plasmáticas, pobres em plaquetas. É de suma importância ressaltar que as plaquetas são elementos celulares, que fortalecem e alicerçam todo este processo, compondo a fração mais vulnerável neste complexo ambiente de cuidados pós operatórios, e de pacientes criticamente enfermos ou inflamados. Desta feita, os testes globais da coagulação, como o tempo de tromboplastina parcial ativada e o tempo e atividade da protrombina  infelizmente não contemplam estes aspectos aqui destacados6,7.

 

A  tromboelastografia (TEG) dinâmica, com avaliações seriadas e sistemáticas, informa não somente acerca do tempo da coagulação, representado pelo tempo r - do alemão reaktionszeit  - mas também outros parâmetros como a  força ou qualidade do coágulo (clot strength) , traduzida através da amplitude máxima (MA maximum amplitude). Estes parâmetros são obtidos do sangue total, ou seja, com todos os elementos necessários para obtermos dados fidedignos, condizentes com os fenômenos do processo da coagulação sistêmica. A título ilustrativo, Mongen8 mostrou que valores de MA menores que 50 mm  em pacientes de pós operatório, estava associado de modo significativo a um maior sangramento do mediastino pela drenagem dos tubos e, por conseguinte, maior frequência de transfusões sanguíneas, que podem trazer efeitos indesejáveis, tais como imunoparalisia, pneumonia nosocomial, úlceras de pressão e distúrbios da cicatrização. Este grupo demonstrou nos pacientes identificados através do TEG, que a utilização da desmopressina venosa poderia reduzir esta complicação (aumento da drenagem sanguínea pelo tubo do mediastino). Portanto, a máxima amplitude do coágulo é uma das variáveis fornecidas por esta metodologia, passível de monitorização, e que pode nos orientar a tomar decisões mais precisas, sobretudo com relação as hemotransfusões.

 

A amplitude máxima do traçado de tromboelastografia analisada de sangue total reflete a força absoluta do coágulo de fibrina, além de nos permitir obter uma informação mais ampla das anormalidades quantitativas e qualitativas das plaquetas, já que infere os fenômenos interativos entre elas, o fibrinogênio, o fator XIII e os zimogênios plasmáticos9.

O plasma contém a maioria dos fatores solúveis da coagulação implicados no processo de formação do coágulo, enquanto o sangue total, como havíamos dito, inclui os fosfolipídeos e as imprescindíveis células da linhagem monocitária e do endotélio que, ao serem ativadas, expressam o fator tecidual (FT). Estudos recentes têm apontado a importância não só da função plaquetária, mas também dos leucócitos, monócitos e endotélio durante a coagulação e fibrinólise10,11. Assim, a escolha do sangue total para análises em amostras citratadas, ou em estado nativo, parece ser mais favorável comparada ao estudo da coagulação plasmática restrito ao método baseado no PT ou PTTa, pois a inclusão de fosfolípides não-fisiológicos são adicionados a estes exames, na tentativa de substituir artificialmente a superfície das células naturais13. Atualmente a tromboelastografia é utilizada numa envergadura que excede sua proposta inicial de 1948. Este equipamento vem sendo utilizado para nos orientar na tomada de decisão em várias condições, como as cirurgias de transplantes hepáticos, cirurgias cardíacas e não-cardíacas, traumas,  avaliação de distúrbios da coagulação promovidos pelos expansores plasmáticos, controle de qualidade de hemocomponentes, análise dos efeitos de drogas em cardiopatas, laboratórios de hemodinâmica, nas parturientes com ou sem eclâmpsia, sepse com CIVD, dentre outros contextos da terapia intensiva14,15,16,17,18,19,20,21,22,23.

 

 

A TECNOLOGIA  DA TROMBOELASTOMETRIA ROTACIONAL

 

 

A Tromboelastometria (TEM) ou trombelastografia (TEG) rotacional é um point-of-care  (roTEM® da Pentapharm GMBH - Rotation TEG – que pode ser visitado neste site http://www.pentapharm.de/html/product/roteg05.html.

O roTEM está disponível no Hospital Pró Cardíaco, na cidade do Rio de Janeiro, desde o ano de 2005. Fomos o primeiro centro brasileiro a utilizar esta tecnologia em ambiente de Terapia Intensiva. Desde então, acumulamos uma experiência com mais de 2500 exames realizados em diversas situações clínicas e críticas, incluindo cirurgias de alta complexidade, racionalizando o emprego, com mais tirocínio, das hemotransfusões.  A tromboelastometria rotacional é um dos mais modernos equipamentos existentes de tromboelastografia disponíveis no mundo. Ele vem se destacando principalmente pela facilidade de ser transportado sem descalibrar, e por dispor de diferentes tipos de reagentes capazes de acelerar o processo de diagnóstico diferencial em diversas situações.

No entanto, os maiores avanços vêm acontecendo em 2 campos ao nosso ver:

1.     Na evolução dos reagentes - em ex vivo são utilizados na amostra citratada de sangue total - que nos trouxe maior robustez, velocidade, reprodutibilidade e qualidade diagnóstica. Em contínuo desenvolvimento, estão hoje disponíveis para complementar nosso entendimento na avaliação de trombose e hemostasia, e nos proporcionar mais opções nas avaliações.

2.     No entendimento dos fenômenos da coagulação, representados pelo trabalho marcante dos Profs. Maureane Hoffman e Dougald Monroe, eminentes cientistas da Universidade da Carolina do Norte, que realçaram a importância do modelo celular da coagulação e,  portanto, a valorização de membranas ou células (fosfolípides), como fatores desencadeantes do processo de hemostasia, bem diferente daquele proposto por Davie24 e MacFarlane25 em 2 publicações sucessivas há 42 anos. 

Contudo, após claras evidências alegando o contrário26, é prática comum valorizar os exames de PTTa ou TCA em muitos serviços, em detrimento de exames mais concisos como a tromboelastometria. Nossa proposta é disponibilizar para a comunidade médica, que se preocupa com hemotransfusão, hemorragia e trombose, um diferencial diagnóstico dinâmico, veloz e coeso. 

Certamente o roTEM é uma ferramenta capaz de agregar valor diagnóstico e conduta adequada aos pacientes clinico-cirúrgicos e de Terapia Intensiva.
 

Rubens C. Costa Filho, MD, FCCP, MBA

Érica Távora Leite, MD

Edimilson Assunção e Silva, MD 

 

REFERÊNCIAS

 

 

1- Hoffman M, Monroe DM. A cell-based model of hemostasis. Thromb Haemost 2001; 85: 958-65.

 

2- Hogan KA, Weiler H, Lord ST. Mouse models in coagulation. Thromb Haemost 2002; 87: 563-74.

 

3- Ozier Y, Steib A, Ickx B, Nathan N, Derlon A, Guay J, de Moerloose P. Haemostatic disorders during liver transplantation. Eur J Anaesthesiol 2001; 18: 208-18.

 

4- Raymond PD, Marsh NA. Alterations to haemostasis following cardiopulmonary bypass and the relationship of these changes to neurocognitive morbidity. Blood Coagul Fibrinolysis 2001; 12: 601

 

5- Spiess BD. Maintenance of homeostasis in coagulation during cardiopulmonary bypass. J Cardiothorac Vasc Anesth 1999; 13:

 

6- Kestin AS, Valeri CR, Khuri SF, Loscalzo J, Ellis PA, MacGregor H, Birjiniuk V, Ouimet H, Pasche B, Nelson MJ. The platelet function defect of cardiopulmonary bypass. Blood 1993; 82: 107-17.

 

7- Kralisz U, Mussur M, Jegier B, Pawlicki L, Majewska E, Iwaszkiewicz A, Ligocka A, Kowalski J, Zaslonka J, Cierniewski C. Activation of blood platelets after percutaneous transluminal coronary angioplasty and coronary artery bypass graft surgery. J Thromb Thrombolysis 2000; 10: 255-64.

 

8- Mongen P, Hosking M. The roles of desmopressin acetate in patient undergoing coronary artery bypass surgery. Anesthesiology 1992; 72:38-46.

 

9- Salooja N and Perry DJ. Thromboelastography. Blood Coagul Fibrinolysis 2001; 12:327-337.

 

10- McEver RP. Adhesive interactions of leucocytes, platelets and the vessel         wall  during hemostasis and inflammation. Thromb Haemost 2001; 86:746-

 

11- Moir E and al. Polymorphonuclear leucocytes have two opposing roles in Fibrinolysis. Thromb Haemost 2002; 87:1006-10.

 

12- Sǿrensen B and Ingerslev J. Whole blood coagulation thromboelastographic profiles employing minimal tissue factor activation. Journal of Thromb and Haemost 2003; 1:551-558.

 

13- Kang Y. Thromboelastography in liver transplantation. Semin Thromb Hemost 1995; 21(suppl 4):34–44.

 

14- Kettner SC, Gonano C, and Zimpfer M. Endogenous heparin-like substances significantly impair coagulation in patients undergoing orthotopic liver transplantation. Anesth Analg 1998; 86:691–5.

 

15- Kaufmann CR, Dwyer KM, Crews JD, Dols SJ, Trask AL. Usefulness of thrombelastography in assessment of trauma patient coagulation. J Trauma 1997; 42:716–20.

 

16- Shore-Lesserson L and Ergin MA. Thromboelastography-guided transfusion algorithm reduces transfusions in complex cardiac surgery. Anesth Analg 1999; 88:312–9.

 

17- Miller BE, Tosone SR and Levy JH. Hematologic and economic impact of aprotinin in reoperative pediatric cardiac operations. Ann Thorac Surg 1998; 66:535–40.

 

18- Pivalizza EG, Pivalizza PJ, Weavind LM. Perioperative Thromboelastography and sonoclot analysis in morbidly obese patients. Can J Anaesth 1997; 44:942–5.

 

19- Sharma SK, Philip J, Wiley J. Thromboelastographic changes in healthy parturients and postpartum women. Anesth Analg 1997; 85: 94-8.

 

20- Ruttmann TG, James MFM, Aronson I. In vivo investigation into the effects of haemodilution with hydroxyethyl starch (200/0.5) and normal saline on coagulation. Br J Anaesth 1998; 80:612–6.

 

21- Jamnicki M, Zollinger A, and Spahn DR. Compromised blood coagulation: An in vitro comparison of hydroxyethyl starch 130/0.4 and hydroxyethyl starch 200/0.5 using thrombelastography. Anesth Analg 1998; 87:989–93.

 

22- Khurana S, and O’Neill WW, Timmis GC, Safian RD. Monitoring platelet glycoprotein IIb/IIIa-fibrin interaction with tissue factor-activated thromboelastography. J Lab Clin Med 1997; 130:401–11.

 

23- Lang T, Toller W, and März W. Difference effects of abciximab and cytochalasin D on clot strength in  tromboelastography. Journal of thromb and Haemost 2004; 2: 147-153.

 

24- Davie EW, Ratnoff OD. Waterfall sequence for intrinsic blood clotting.

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25- MacFarlane RG. An enzyme cascade in the blood clotting mechanism,

and its function as a biological amplifier. Nature 1964; 202: 498-9.

 

26- Eikelboom J, Hirsh J. Monitoring unfractionated heparin with the aPTT: Time for a fresh look. Thromb Haemost 2006;96:547-52.